#Destaques | 10/12/2014
No Dia Internacional dos Direitos Humanos, Comissão Nacional da Verdade entrega à presidenta Dilma relatório que confirma morte e desaparecimento de 434 pessoas durante a ditadura.
O Brasil reescreve sua história mais recente e mais amarga e estabelece para sempre um compêndio oficial do qual ninguém poderá prescindir a partir de agora. A Comissão Nacional da Verdade divulgou nesta quarta-feira (10), Dia Internacional dos Direitos Humanos, três décadas após o fim da ditadura militar, seu relatório final. Arrola pela primeira vez os nomes dos 377 agentes do Estado, pelo menos 190 deles ainda vivos, acusados de crimes contra os direitos humanos no período, para os quais pede punição – ou seja, que para eles não valha a Lei da Anistia, de 1979.
A comissão não tem caráter deliberativo e o fim da Anistia é um objetivo considerado difícil de alcançar na corte máxima de Justiça, mas, para além das recomendações concretas, o volume de informações sobre as mortes de 434 vítimas e depoimentos tem voltagem suficiente para provocar mal-estar nas Forças Armadas e em setores civis coniventes com as violações à época.
Nas mais de 1.300 páginas entregues à presidenta Dilma Rousseff, ela própria presa e torturada pelos militares e ouvida no documento, o texto detalha, além dos métodos de tortura, execuções, ocultação de cadáveres, detenções ilegais e desaparecimentos forçados que, “dada a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, e não são passíveis de anistia”.
Pelo relatório desfilam depoimentos de mulheres violentadas; de mães que perderam os filhos; de militantes políticos que perderam seus companheiros; de advogados que andavam de lá para cá o dia todo com uma máquina de escrever em um carro para defender os detidos; de assassinos que descrevem como matavam impiedosamente. Descrevem-se ainda os lugares de tortura, as celas, as empresas envolvidas e as ramificações internacionais da repressão brasileira, entre outros capítulos dessa época pavorosa.
Dilma se emociona e lembra: “a verdade liberta…”
“Conhecer a história é condição imprescindível para conhecê-la melhor […]. A verdade não significa revanchismo. A verdade liberta todos nós daquilo que ficou por dizer. Liberta tudo aquilo que permaneceu oculto”, disse Dilma, enviando mensagem às Forças Armadas. A presidenta chorou durante o discurso.
Com a conclusão dos trabalhos da comissão, o Brasil encerra um capítulo que os vizinhos Argentina e Chile, que também atravessaram regimes militares, completaram há alguns anos, antes de começar a julgar violadores. Dilma avança na agenda que começou com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o hoje opositor que em seu primeiro ano decretou a reparação de vítimas, e seu mentor e antecessor, Lula (2003-2010), que estabeleceu comissão para relatar o caso de mortos e desaparecidos.
Parte do sexteto que dirigiu a Comissão da Verdade, que trabalhou desde 2012, a advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha disse ao jornal EL PAÍS crer que a pressão popular é a melhor maneira de fazer valer as recomendações do documento e “cumprir os pactos internacionais dos quais o país é signatário”.
Rosa Maria se refere à incompatibilidade entre a Lei da Anistia, que fez perder efeito “crimes políticos e conexos”, e a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), da qual o Brasil é membro, que já declarou que a legislação é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos por considerar que “perpetua a impunidade”.
“Estamos submetidos a estes pactos que assinamos. A Constituição exige que eles sejam cumpridos”, disse a advogada.
Na prática, a punição aos torturadores parece distante: o Supremo Tribunal Federal – mais alta corte do país – já julgou uma ação de inconstitucionalidade contra a Lei de Anistia em 2010, e considerou que ela se aplica mesmo para casos de tortura e crimes comuns cometidos por agentes do Estado.
Um recurso da Ordem dos Advogados do Brasil ainda está pendente de julgamento e deve ser analisado pelo tribunal em breve. A composição dos ministros do Supremo atual é diferente da de 2010 e pode ter mudanças nos próximos anos que incline a balança em outra direção. Até o fim de 2018, a presidenta Dilma Rousseff deverá indicar substitutos do ministro Joaquim Barbosa, que se aposentou, e de ao menos outros cinco magistrados que completarão 70 anos no período e terão de se aposentar compulsoriamente.
De acordo com Marcelo Figueiredo, professor de direito constitucional da PUC-SP, o Congresso Nacional poderia mudar esta situação editando uma nova lei que suspenda o efeito da anterior. Atualmente dois projetos de lei que cancelam a anistia irrestrita estão parados no Parlamento.
“O Supremo não pode legislar sobre uma matéria que já analisou sem que hajam fatos novos, e a presidenta Dilma não pode editar uma medida provisória revogando a lei, já que este é um assunto de Direito Político que cabe exclusivamente ao Congresso, segundo a Constituição”, afirma.
Como obstáculo a uma legislação que penalize os torturadores, Figueiredo ressalta o fato de que a Câmara e o Senado eleitos este ano têm a composição mais conservadora das últimas eleições, e que “essa não é uma prioridade para eles no momento”.
“Se a sociedade e as ONGs que militam na área dos Direitos Humanos não se mexerem, as recomendações serão letra morta”, conclui Figueiredo.
A esperança de muitos dos defensores da punição aos violadores é que o documento municie procuradores e promotores a avançar em processos nas primeiras instâncias, por enquanto.
Já o temor em alguns setores do governo é que a divulgação do calhamaço traga mais um elemento de tensão para Dilma num momento de montagem do segundo mandato e de reacomodação da base de apoio do governo no Congresso.
Tem sido até agora sem sobressaltos a delicada relação de uma presidente ex-torturada com a hierarquia das Forças Armadas – que não flerta com os poucos que defendem golpe militar nas ruas, mas não parece disposta a fazer mea culpa pública pelos crimes e resistiu a colaborar integralmente com a Comissão da Verdade. Recentemente, clubes de militares da reserva protestaram ativamente dizendo que o documento é parcial por não compilar crimes da “esquerda” que combateu o regime.
Desmilitarização das polícias estaduais
Nas dezenas de recomendações, que incluem a retirada de condecorações a violadores e até mudanças de nomes de avenidas e praças, o relatório faz uma ponte direta com o presente ao pedir a desmilitarização das polícias militares estaduais, a base da segurança pública no país.
Segundo o documento, as detenções arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres comuns no país hoje se devem ao fato de que “as violações (…) verificadas no passado não foram adequadamente denunciadas, nem seus autores responsabilizados, criando-se as condições para sua perpetuação.”
(Fonte: Gil Alessi – El País)