#Notícias | 19/09/2019
“A situação está ruim, mas estamos ainda no meio do caminho do que tende a ser pior”. O desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15) e professor de Direito do Trabalho Jorge Luiz Souto Maior resumiu dessa forma sua visão sobre os impactos da reforma trabalhista em vigor no Brasil desde 2017.
Segundo ele, a reforma já ampliou o abismo social e tem servido para degradar as relações trabalhistas. Somam-se a esse cenário o nível recorde de desemprego e os cortes nos investimentos em serviços públicos.
“Sem querer assumir que caminharam na direção errada, começam a dizer que a reforma foi pouco e querem mais. Pretendem, então, aumentar a dose do mesmo “remédio”. E aumentar a dose é destruir o que sobrou: caminhamos possivelmente, se nada houver, para a destruição do Estado democrático de direitos sociais no Brasil”, argumenta.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Souto Maior, que leciona na tradicional faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo, antevê que o Brasil enfrentará problemas econômicos e sociais ainda maiores por não medir corretamente os efeitos da fragilização das relações entre patrões e empregados.
“Mas essa não é uma projeção no sentido do ‘inevitável’. Há, ainda, em funcionamento, muitas instituições jurídicas, democráticas e políticas, e essas instituições podem fazer um grande papel no sentido de barrar o percurso em direção à barbárie”, ressalva.
O desembargador apresenta, ainda, reflexões a respeito dos diversos erros que abriram caminho para a aprovação desta “reforma” e que deixaram campo livre para outras reformas similares, como a da Previdência.
Na entrevista, Souto Maior destacou dados do mundo do trabalho e do Judiciário brasileiro e analisou o fenômeno da uberização da economia e das relações de trabalho.
Além disso, trouxe uma análise da evolução histórica do Direito do Trabalho enquanto construção social, apresentando, por fim, a avaliação em torno da urgência de se corrigirem os erros cometidos neste campo, sob pena de mergulharmos em um caos social.
“A mera piora das condições materiais não é fundamento para acreditar que alguma reação popular ocorra. A situação de 56 milhões de brasileiros já é a de “viver” abaixo da linha da miséria”, analisa.
Ele apresenta, nesse aspecto, uma ressalva fundamental: não basta simplesmente defender o retorno ao que tínhamos recentemente. É preciso construir uma sociedade, uma economia e um Direito efetivamente inclusivos.
Leia a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Sobre as mudanças na legislação trabalhista, já é possível sentir reflexos no juízo do Trabalho?
Souto Maior: Eu atuei na Vara do Trabalho exatamente até dezembro de 2017 e a Lei n. 13.467, da reforma [trabalhista], entrou em vigor em novembro daquele ano. Daí por diante eu passei a atuar no Tribunal, que tem uma dinâmica de trabalho diferente. Eu não tenho, pois, a avaliação do mesmo lugar antes e depois da legislação. O que temos, porém, como resultado dado por números é a diminuição sensível do número de reclamações trabalhistas – fato que tem sido apresentado por parte da grande mídia como um efeito benéfico da reforma, mas de fato não é.
A diminuição das reclamações trabalhistas se deu por uma imposição de custos processuais, que, na verdade, acaba sendo um expediente para inviabilizar o acesso à Justiça. O caminho necessário, no entanto, na perspectiva do Estado Democrático de Direto (considerando, sobretudo, a essencialidade dos direitos sociais, conforme preconizado na Constituição Federal), é o da ampliação das vias de acesso à Justiça. O acesso à Justiça é uma conquista fundamental para a efetivação dos direitos sociais, dos Diretos Humanos e, para tanto, é necessário, também, que se tenha uma instituição do Estado com relação à qual os titulares dos direitos sociais depositem confiança.
Não que a Justiça do Trabalho não pudesse ser alvo de críticas, eu mesmo tenho sido historicamente crítico da Justiça do Trabalho em vários aspectos ligados ao seu funcionamento, sobre a visão de mundo que expressa, etc. O que quero dizer é que o alto número de processos na Justiça não deveria ter sido visto como um defeito que devesse ser corrigido. Se havia grande número de reclamações trabalhistas isso, por um lado, é sinal de que parte considerável da população mais pobre do país confia em uma instituição do Estado, o que não deixa de ser uma conquista da cidadania; e, por outro, que, infelizmente, a legislação trabalhista continua sendo extremante desrespeitada em nosso país.
E como surgiu essa mecânica de destruição?
Para destruir essa via de acesso à Justiça foi feita muita propaganda dizendo que as reclamações trabalhistas eram maquiadas, inventadas; que os trabalhadores requeriam direitos que não eram devidos; que a Justiça conferia direitos não devidos – o que não era verdade, como se pode constatar dos números à época divulgados, revelando que a grande maioria das reclamações tratava de verbas rescisórias não pagas. Ainda temos uma realidade do trabalho que convive muito, infelizmente, com o desrespeito reiterado da legislação.
Esse desrespeito gera um conflito bastante intenso, que refletia nas ações perante a justiça. O que se fez foi, portanto, algo que, sem interromper essa prática de um Direto do Trabalho não respeitado de forma reiterada e convicta, visou unicamente dificultar a vida dos trabalhadores e trabalhadoras na luta por seus direitos.
Esse efeito da redução de reclamações, portanto, traz consigo um dado extremamente maléfico, que é contrário a uma lógica de Estado Social e que vai no sentido da destruição concreta de direitos humanos, sociais e trabalhistas.
E essa dificuldade de acesso à justiça por si está aliada a outros elementos que compõem a “reforma” trabalhista: fragilização da atuação sindical; multiplicação das formas de contratação precárias, e ampliação dos mecanismos de retirada de direitos por meio de negociações individuais entre trabalhadores e empregadores.
Estabeleceu-se a situação de um trabalhador que passa a ter uma dificuldade de ir à Justiça, com medo dos altos custos do processo e de um sindicato fragilizado pela perda de arrecadação para o seu custeio, em uma sociedade com um desemprego de 13 milhões de pessoas, as quais, por conta disso, estão dispostas a aceitar qualquer trabalho sem perspectiva de direitos.
Quais as consequências?
O trabalhador, nesse ambiente, com formas precárias de contratação e sendo pressionado para aceitar condições menos favoráveis em uma negociação individual com seu empregador, fica em posição de plena submissão. A soma de tudo isso é aquilo que tem sido verificado: o aumento do sofrimento no trabalho, das doenças no trabalho, das questões psíquicas que dizem respeito ao trabalho. E do ponto de vista econômico, já apontado em vários em estudos, a diminuição salarial, do ganho da classe trabalhadora.
As negociações de salários não estão conseguindo acompanhar na média sequer a inflação.
Então os trabalhadores estão participando menos da riqueza coletivamente produzida. Consequentemente a concentração [da riqueza] está sendo maior, sem que tenha havido também – e até por consequência disso – o que se prometeu: o aumento de pessoas empregadas. O que aconteceu foi a disseminação do subemprego, com redução tão intensa de direitos que a situação fica mais bem identificada como desemprego e rebaixamento do patamar de cidadania.
O efeito geral é desastroso do ponto de vista do projeto de sociedade, da inserção humana e de cidadania da classe trabalhadora. E é desastroso também no aspecto econômico, com redução de consumo e das possibilidades econômicas do país, de arrecadação, dos projetos públicos e dos investimentos públicos, o que, como efeito bola de neve, não se querendo reconhecer os erros, acaba alimentando o discurso em torno da necessidade de novas reformas, como a da Previdenciária, que vai penalizar novamente a classe trabalhadora.
Além disso, com a consequente redução das fontes de custeio necessárias para o enfrentamento das questões de ordem pública, o que se verifica, também, é o retorno de doenças que já se tinham por erradicadas e o completo desprezo pelos cuidados com o meio ambiente (vide as queimadas na Amazônia, que também têm outras explicações, como o atendimento prioritário e promíscuo aos interesses do agronegócio).
Tudo isso é efeito do esfacelamento posto em marcha desde a década de 1990 do projeto de Estado Social de Direito fixado na Constituição de 1988. Tudo está ligado. Pode parecer exagero, mas não é: tudo está ligado à “reforma” trabalhista.
A “reforma” trabalhistas alargou as fissuras e o que se vislumbra é o crescimento dos problemas sociais e econômicos que já existiam, com o gravame de que desta vez tudo é feito sem a menor despreocupação de acertar, deslocado de qualquer base de conhecimento, por meio de memes, lives, frases de efeito, ameaças e força bruta, que interditam até mesmo as possibilidades de debate.
A situação está ruim, mas estamos ainda no meio do caminho do que tende a ser pior. Sem querer assumir que caminharam na direção errada, começam a dizer que a reforma foi pouco e querem mais. Pretendem, então, aumentar a dose do mesmo “remédio”. E aumentar a dose é destruir o que sobrou: caminhamos possivelmente, se nada houver, para a destruição do Estado democrático de direitos sociais no Brasil.
Mas essa não é uma projeção no sentido do “inevitável”. Há, ainda, em funcionamento, muitas instituições jurídicas, democráticas e políticas (públicas e privadas), e essas instituições podem fazer um grande papel no sentido de barrar o percurso em direção à barbárie.
Hoje o caminho parece sem volta. Qual o senhor imagina que venha a ser o final dessa história? A população conseguiu entender o tamanho do problema que essas reformas trazem?
É difícil de responder o que vai acontecer. Quem faça esse tipo de análise depois senta e fica torcendo para estar certo, sempre com previsões pessimistas. Como eu não quero que aconteça, não vou projetar. Até porque nesses momentos da história em que essas crises se instauram, abre-se uma porta que vai para caminhos diversos que são construídos a cada novo dia, a cada instante. Um fato hoje pode mudar completamente o rumo dessa história. Mas os fatos não ocorrem por acaso, ocorrem por obra da vontade humana. Por isso é importante, o quanto antes a percepção da população sobre o que está ocorrendo, para que o futuro seja fruto de uma obra consciente e não do acaso.
É muito difícil apostar no que vai acontecer. Um esclarecimento popular mais amplo? Não é algo tão simples e que deflua naturalmente da necessidade econômica. Não podemos perder de vista que muitas pessoas, milhões até, na população brasileira, já vivenciam essa realidade de barbárie há muitos anos. A questão é que, agora, está se ampliando e atingindo a uma outra camada da população. As possibilidades de reação estão dadas. Mas daí a chegar a um estágio de compreensão e a uma atuação coletiva os passos podem ser bastante complexos. Afinal, na distopia o individualismo impera e as pessoas tentam se salvar nas batalhas do dia a dia.
Se você pensar na reforma da Previdência, por exemplo, deve lembrar que ela não diz respeito à realidade palpável de milhões de pessoas, que já estão fora desse regime há muitos anos. Ocorre que a reforma vai além e maltrata ainda mais até mesmo os excluídos. Oportunidades de reconstrução de laços de solidariedade se abrem. Mas se fecham se a perspectiva de reação se mantiver na linha da manutenção das coisas como estavam, onde direitos, aos olhos de milhões, apareciam como privilégios.
Digamos assim: a mera piora das condições materiais não é fundamento para acreditar que alguma reação popular ocorra. A situação de 56 milhões de brasileiros já é a de “viver” abaixo da linha da miséria. É preciso algo mais: é preciso apresentar razões suficientes, razões sérias, honestas, de que é possível construir uma sociedade que seja de fato inclusiva. Não dá para manter o mesmo discurso, não dá para simplesmente acusar a ordem política atual de estar destruindo tudo. É preciso ter uma proposta que seja construtiva e que seja realmente inclusiva.
A gente pode fazer a crítica em relação aos retrocessos – pode e deve. São muitos e em diversas áreas. Mas para reverter esse quadro, o discurso da preservação do quadro em que vivíamos não é suficiente. É preciso uma proposta de resistência ao retrocesso, mas que apresente avanços, porque senão o convencimento atinge a muito poucas pessoas e não ganha, por assim dizer, apoio popular. Não se esqueça que o discurso da redução de direitos é apoiado na luta contra os privilegiados e em favor dos que não têm emprego ou benefícios previdenciários.
E a respeito de uma suposta morte do Direito do Trabalho, com todos esses ataques: existe esse risco ou ao contrário, o Direito do Trabalho continua muito vivo?
Não existe uma possibilidade de inexistência de direitos trabalhistas num modelo de sociedade em que o trabalho é central. A regulação desta relação de trabalho, numa perspectiva produtiva, é isso que o Direito do Trabalho faz. Havendo trabalho assalariado, os direitos trabalhistas existirão e trabalho assalariado haverá enquanto se mantiver esse modelo de organização social baseada na exploração capitalista do trabalho. Essa é a realidade de diversos países. Os direitos podem ser distintos, mas em todos os lugares esses direitos atendem em geral os mesmos parâmetros: limitação da jornada, idade mínima para o trabalho, horas de descanso, proteção contra acidentes, proibição de formas degradantes de trabalho etc.
Essas regulações existirão de um jeito ou de outro. Mesmo que alguém consiga rasgar toda a legislação trabalhista, não significa dizer que o mundo do trabalho será mantido em plena anomia. O mundo do trabalho vai se reorganizar de algum modo e o conflito capital e trabalho vai gerar limitações à exploração do trabalho, enfim. A discussão que precisamos fazer é, portanto: que Direito do Trabalho queremos? Para quais finalidades?
E me parece, na linha do que falei há pouco, que, diante de uma proposta que preconiza uma terceirização ampla, o trabalho intermitente, a fragilização da atuação sindical, aumentando o sofrimento do trabalho e diminuindo a participação dos trabalhadores na riqueza nacional, é necessário apontar os efeitos já nefastos provocados por essas alterações, que são visíveis, mas a resistência não pode se limitar ao efeito de meramente defender a preservação do Direito do Trabalho no estágio em que se encontrava. Um Direito do Trabalho que já autorizava a terceirização na atividade-meio, gerando uma exclusão dentro da inclusão para 12 milhões de pessoas. Que não assegurava um salário mínimo minimamente adequado. Que não garantia a proteção contra a dispensa arbitraria. Que não era eficiente para proteger o efetivo exercício do direito de greve.
É preciso explicar para o conjunto da sociedade a relevância de se promover uma relação capital e trabalho em que o trabalho seja de fato inclusivo, sendo essencial para tanto que o sindicato tenha efetiva força negocial, o que só se atinge com o pleno exercício do direito de greve.
Uma sociedade que se organiza em torno da exploração capitalista do trabalho deve possuir mecanismos para impedir que o poder econômico não se estabeleça de forma absoluta, impondo-lhe, ao menos, limites para que as pessoas não morram de tanto trabalhar e para que a riqueza produzida seja melhor distribuída e atenda a interesses coletivos política, democrática e dialeticamente concebidos.
Construir uma sociedade viável à condição humana de todas as pessoas é o que atende ao que se pode conceber como um projeto de sociedade. Mas só se pode falar em projeto se este for concebido para todos e todas e se for integralmente compreendido. Nesse contexto, a melhoria das condições de trabalho e o aumento dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras deve ser compreendido como algo desejado por todos. E é isso, ademais o que está previsto na Constituição de 1988. Um de nossos grandes problemas, ademais, é o de que em nenhum momento formos capazes de experimentar esse pacto.
O momento é de discutir abertamente as potencialidades, os objetivos, as limitações e os benefícios do Direito do Trabalho. O Direito do Trabalho não será um instrumento revolucionário. Ele será um instrumento de melhoria das condições materiais da classe trabalhadora.
É importante debater se os Direitos Humanos, trabalhistas e sociais, impondo limites aos interesses puramente econômicos, são suficientes para salvar, aprimorar e desenvolver o modelo de sociedade capitalista como um projeto efetivamente viável à condição humana. Mas está fora de discussão a proposição inversa, pois sem a visualização desses limites não se tem qualquer perspectiva de uma sociedade em direção a algum lugar. Vira pura e simplesmente a luta de todos contra todos, o salve-se quem puder e o quem pode mais chora menos. Não resta qualquer tipo de argumento defensável do modelo de sociedade, que só tem sentido do ponto de vista de seres humanos que se organizam socialmente para satisfazerem suas necessidades comuns.
E o que acostumamos a chamar de “Uberização do trabalho”; fazendo uma comparação com os problemas trabalhistas que a gente já vivencia: é um fenômeno ainda mais grave?
Eu vejo com os olhos de quem estuda o Direito do Trabalho há muitos anos e que sempre o fez a partir de uma perspectiva histórica. Essa análise permite compreender os direitos trabalhistas como fruto dos conflitos sociais. Ao longo de décadas, algumas limitações ao poder econômico foram estabelecidas, como, por exemplo, limite do tempo do trabalho. No entanto, houve sempre um movimento de fuga do capital aos limites fixados. O Direito do Trabalho, visto como um aparato teórico técnico axiológico e teleológico concebido para aplicar as normas historicamente construídas, compreendendo os movimentos de fuga do capital, foi fincado em normas dinâmicas (princípios), exatamente para acompanhar e anular a eficácia desses movimentos. Assim, o advento de renovadas formas de exploração do trabalho é uma realidade bastante conhecida pelo Direito do Trabalho e que é, incapaz, portanto, de lhe ludibriar.
Além disso, os novos modos de exploração do trabalho acabam gerando, em muito pouco tempo, as bases materiais das quais os direitos nascem.
O processo de uberização, por isso, pode-se dizer, mesmo reconhecidas as suas particularidades, na essência, é mais do mesmo. As plataformas digitais são mecanismos que facilitam a utilização do trabalho alheio e a venda da força de trabalho no mercado. Aquilo que parece ser muito diferente, na verdade não tem diferença essencial. Assim, passado o encantamento, vai se apresentar como de fato é. Logo vai se perceber que um motorista que trabalha na Uber, que parece estar prestando um serviço para uma pessoa determinada por meio de um aplicativo, na verdade está vendendo sua força de trabalho para quem detém o aplicativo. A proprietária do aplicativo utiliza a força de trabalho do motorista para auferir lucro.
Os tais prestadores de serviço que antes viam na atividade uma espécie de bico, um modo de ganho entre um emprego e outro, persistindo na situação de desemprego e passando a encarar a atividade como principal e duradora, tendem a se perceber como trabalhadores e até se compreenderem como integrantes de uma coletividade específica. Daí a formação de sindicatos, para viabilizar a reivindicação de melhores condições de trabalho, é um pulo. E isso, ademais, já vem ocorrendo em vários países.
A Justiça do Trabalho vem acompanhando isso?
A Justiça do Trabalho poderá, sim, fazer a sua parte, reconhecendo direitos aos trabalhadores da dita economia 4.0. Mas não será a protagonista, vez que o movimento social precede.
Esse processo de precarização que o Brasil está passando encontra paralelo em outros lugares no mundo?
É um movimento mundial, mas há que se entender o seguinte: na periferia do capital as consequências do aumento da exploração do trabalho e da diminuição da proteção social, o primeiro já no nível mais elevado e o segundo no plano do patamar mínimo, são sentidas bem mais rapidamente e são muito mais graves.
A intensidade de precarização jurídica que se implementou no Brasil com a “reforma” trabalhista, e que se intensificou com a Lei da Liberdade Econômica, é bastante superior àquela que se encontra nos países de economia paralela com a do Brasil. Com isso, o Brasil, inclusive, passou a ser uma espécie de laboratório da retração profunda de direitos trabalhistas.
Essa experiência, dados os efeitos desastrosos já sentidos, tende a não ser seguida. Mas nós mesmos não estamos conseguindo compreender isso, pois até há quem considere a possibilidade de aumentar a dose.
Estamos, de fato, diante da urgência de iniciar uma reversão da retração de direitos trabalhistas e sociais e de recuperação da garantia do acesso à justiça. O caminho, urgente e necessário, deve ser o da evolução da proteção jurídico-trabalhista. Se não houver a reversão deste quadro, em pouco tempo, o quadro social e econômico poderá entrar em colapso, correndo-se o grave risco do aparecimento de “saídas” antidemocráticas.
Como esse enfraquecimento, essa desmoralização do Judiciário impacta na democracia?
Não acho que o Judiciário como um todo esteja desmoralizado por conta de situações que representam desvios da regularidade da atuação jurisdicional. Não se pode realizar uma avaliação generalizante a respeito. O Judiciário continua em regular funcionamento e isso é essencial, inclusive, para conter quaisquer pretensões autoritárias.
As instituições podem apresentar problemas, mas a identificação dos problemas não deve servir como desculpa para o aniquilamento das instituições. Devem, isto sim, ser visualizadas para o seu necessário aprimoramento, buscando a superação das deficiências explicitadas.
Para isso não são eficientes, também, as iniciativas que buscam simplesmente perseguir e destruir pessoas. A questão não é essa. Não é de um problema meramente pessoal que se trata. O aprimoramento passa pela compreensão de que as instituições servem à sociedade como um todo, no sentido da prestação de serviços voltados à satisfação dos interesses públicos.
É urgente reconhecer que o enfraquecimento do Judiciário pode ser um passo decisivo para o desprezo à democracia. E é fundamental, também, que os próprios integrantes do Judiciário tenham a percepção da relevância de seu papel, o que exige, mais do que nunca, uma reafirmação de seu compromisso com a regularidade procedimental, com o respeito às garantias constitucionais no plano dos direitos fundamentais e com a efetividade dos direitos sociais, aos quais os direitos econômicos estão condicionados.
Fonte: Antonio Biondi e Napoleão de Almeida – Brasil de Fato