#Destaques | 04/01/2019
“Seria inacessível que alguém te mate/se cada bala custasse o que custa um iate”. A frase não é de nenhum especialista em segurança pública. Trata-se de um verso da canção La Bala, composta pelo grupo porto-riquenho Calle 13, para denunciar a banalização da violência promovida em todo o mundo pela indústria armamentista.
Mas o novo governo brasileiro não pensa igual. No dia 29 de dezembro, há dois dias de assumir como presidente da República, Jair Bolsonaro anunciou em uma rede social que pretende, por decreto, flexibilizar os requisitos para a posse de armas no Brasil, endurecidos desde 2003 pelo Estatuto do Desarmamento.
A medida, anunciada por Bolsonaro, diz respeito à posse de armas, ou seja, à manutenção de armamento em domicílio. O porte de armas – poder circular armado em espaços públicos – seguiria restrito às polícias, forças armadas e oficiais de segurança privada devidamente registrados.
“Por decreto pretendemos garantir a posse de arma de fogo para o cidadão sem antecedentes criminais, bem como tornar seu registo definitivo”, escreveu.
Segundo a coluna Painel, do jornal Folha de São Paulo, a medida recebe o apoio do ex-juiz de primeira instância e agora ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro, Sérgio Moro.
Segundo as regras em vigor, a posse de armas de fogo é permitida no Brasil para maiores de 25 anos, com trabalho regularizado, que não respondem a inquéritos ou processos, ou tenham antecedentes criminais. O Estatuto exige ainda a comprovação de capacidade técnica e psicológica, e que o cidadão declare a efetiva necessidade de ter uma arma. Já o decreto que regulamenta a lei exige a renovação periódica do registro, que atualmente é de cinco anos.
Guilherme Paiva, advogado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), explica que o presidente não tem competência para modificar por decreto o conteúdo do Estatuto do Desarmamento, atribuição que é do Congresso Nacional. Mas poderia sim alterar o tempo de validade do registro.
“Muitas das regras atuais estão previstas na lei, que é o Estatuto do Desarmamento. Para alterar normas ele vai ter que apresentar um projeto de lei ao Congresso e esse projeto precisa ser aprovado. Outras regras são definidas no decreto que regulamenta essa lei. Uma delas é justamente o tempo e as condições para tirar a autorização para a posse de armas. Os requisitos legais continuam os mesmos, afinal, o decreto não poderá ir além do que está definido no Estatuto do Desarmamento”.
Logo após as eleições de outubro deste ano, o Instituto Sou da Paz emitiu nota pública se posicionando sobre o tema. “Começamos nosso trabalho em 1999, a partir da campanha dos estudantes pelo desarmamento que levou o país a destruir mais de 600 mil armas e ter a primeira queda nos homicídios em 20 anos de violência crescente, ano após ano. Se é certo que a arma de fogo não mata sozinha, é mais certo ainda que, sem ela, é muito mais difícil tirar a vida de alguém”, dizia o comunicado.
Ao Brasil de Fato, Ivan Marques, diretor executivo do Instituto, afirmou não ver pertinência na modificação das regras atuais para a posse de armas de fogo, ao contrário, destaca a importância de se fazer cumprir as regras do Estatuto do Desarmamento que, segundo ele, não teve a integralidade do seu conteúdo levada à prática.
“Hoje, os requisitos me parecem bastante razoáveis. Passar por uma prova psicológica, ou seja, ser submetido a uma avaliação de um profissional da Polícia Federal para atestar sua capacidade psicológica me parece absolutamente sensato frente a todos os atentados que nós vemos toda semana nos Estados Unidos ou mesmo aqui no Brasil. Me parece um filtro interessante para barrar que armas caiam na mão de malucos. Outro teste é o de aptidão física. Do mesmo jeito que nós temos que fazer um teste prático para tirar a carteira de motorista. A arma é a mesma coisa. Então me parecem medidas absolutamente razoáveis que eu não vejo sentido flexibilizar”.
Na opinião de Marques, a proposta do presidente Jair Bolsonaro de instituir um registro definitivo das armas de fogo tira do Estado qualquer controle sobre a circulação e facilita o comércio ilegal.
“Quando o presidente anuncia que esse registro vai ser permanente, ele está abrindo mão de controlar essa arma e em segundo lugar ele abre mão de ter o controle sobre quem manuseia essa arma. Ou seja, uma concessão que o Estado brasileiro dá às pessoas de ter uma arma em casa passa a ser algo absolutamente incontrolável”.
Para Paiva, um curto texto de um tuíte não é suficiente para explicar uma medida com implicações tão graves.
“Vai ser um registro único permanente e não vai haver nenhum controle periódico dessa arma? Como ela será registrada? Será de posse permanente e de responsabilidade de quem quer que tenha registrado essa arma? Essa posse vai ser vinculada a uma pessoa física viva? Ou seja, se o dono da arma falecer, o registro cai? Então tem uma série de dúvidas que esse tuíte não resolve”.
Jogo de interesses
O Instituto Sou da Paz realizou um levantamento de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) relacionados aos recursos de campanhas eleitorais em 2014, quando ainda era permitido o financiamento de empresas. Segundo a pesquisa, as doações da indústria armamentista nas eleições gerais de 2014 chegaram a R$ 1,91 milhão, com valores distribuídos a 21 candidatos ao cargo de deputado federal, 12 ao cargo de deputado estadual, dois candidatos a governador e um aspirante ao senado.
Na lista dos beneficiados por recursos provenientes da indústria armamentista está o novo ministro-chefe da Casa Civil do governo de Jair Bolsonaro, Onyx Lorenzoni, que recebeu R$ 100 mil de empresas do setor. Lorenzoni foi eleito naquele ano deputado federal pelo Democratas (DEM).
No primeiro pregão de 2019, um dia após a posse do novo governo, as ações da empresa Taurus, fabricante brasileira de armas de fogo subiram consideráveis 50%.
O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria do ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Onyx Lorenzoni, mas até o fechamento da reportagem não obteve retorno.
Política de controle de armas
Um referendo foi realizado no primeiro ano do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o desarmamento no Brasil. Marques chama a atenção para o fato de que, ao contrário do que se divulga, a consulta pública não dizia respeito às regras de controle, mas à proibição do comércio de armas e munição. A proposta foi recusada por 63% da população. Assim, as demais regras determinadas pela Lei nº 10.826/2003 permaneceram inalteradas e o comércio de armas seguiu autorizado, de acordo com o resultado do referendo.
Um estudo intitulado “Controle de armas no Brasil – O caminho a seguir”, realizado pelo Instituto Sou da Paz em parceria com a Fundação Friedrich Ebert, chama a atenção para os resultados da implementação da legislação que restringiu o acesso às armas de fogo no país.
“O Estatuto do Desarmamento foi um fator importante para reverter o crescimento acelerado das mortes por arma de fogo no Brasil. Entre 1993 e 2003 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes, cometidos com armas de fogo, crescia aproximadamente 6,9% ao ano. A partir de 2004, com a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, houve uma clara reversão de tendência, com o crescimento caindo para 0,3% ao ano”, diz o documento.
O estudo revela ainda o forte impacto econômico da violência por arma de fogo para o Estado. “Dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do Ministério da Saúde apontam que a violência armada impõe um impacto financeiro de quase R$ 44 milhões ao Sistema Único de Saúde (SUS), relacionado apenas aos gastos com as internações causadas por ferimentos a bala”.
Fonte: Pedro Ribeiro Nogueira – Brasil de Fato