#Destaques | 23/11/2018
A cabeça do governo Bolsonaro – Moro, Guedes e os militares – procurará fazer uma reorientação ultraliberal da economia e do Estado brasileiro, mas deverá enfrentar uma oposição crescente a esse projeto, pois ele entra em contradição com os interesses da maioria dos brasileiros e brasileiras. A avaliação é do ex-presidente do PT e ex-chefe da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu, que esteve em Porto Alegre esta semana para o lançamento do primeiro volume de suas memórias (Zé Dirceu – Memórias – Volume 1, publicado pela Geração Editorial).
O livro foi escrito inteiramente na prisão, durante aproximadamente um ano. “Sentado numa cama, com uma luz mais pra ruim do que pra boa, sem mesa e sem cadeira. Acabei escrevendo 700 páginas, com o mesmo papel e a mesma caneta…”, conta. O livro foi escrito principalmente aos finais de semana, período marcado pelo que chamou de “depressão pós-visita”. “Escrever esse livro me ajudou também a passar os sábados e domingos que são muito pesados quando você está preso, principalmente porque as visitas ocorrem na sexta”.
José Dirceu foi condenado a 30 anos e 9 meses de prisão em um processo da Operação Lava Jato. Em agosto deste ano, o STF confirmou decisão tomada em junho, pela libertação de Dirceu, sob o argumento de que há probabilidade de sucesso nos recursos apresentados pelo ex-ministro aos tribunais superiores contestando sua condenação. Após ser libertado, ele se dedicou a aprontar os manuscritos escritos na prisão para a publicação do livro. “Meu objetivo foi contar a minha história e revisitar a história do Brasil nestes 60 anos. Procurei, principalmente, deixar uma contribuição para a juventude, para que ela reflita sobre os caminhos e projetos para o país”. Ele já planeja o segundo volume no qual pretende falar do período em que esteve na prisão.
Em entrevista ao Sul21, José Dirceu fala sobre o significado do livro de memórias que lança agora, com um olhar sobre o presente e os cenários que se abrem para o Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro. “O nacionalismo de Bolsonaro é de mentira. Ele é muito mais retórico, explorando o nacionalismo que existe entre o povo por meio dos símbolos nacionais, do que uma política de defesa dos interesses nacionais”, afirma. Ele acredita que os mais de 47 milhões de votos obtidos por Fernando Haddad no segundo turno indicam que há possibilidade de resistência política e social a esse projeto:
“Acredito que temos força para enfrentá-lo. Estamos vivendo um período histórico onde acumulamos organizações políticas e sociais, programas, ideias e lideranças que não foram destruídas como aconteceu no golpe de 64. Temos uma base política e social para enfrentar e fazer oposição ao governo Bolsonaro. Esse é o mandato que recebemos das urnas”.
Sul21: Em um recente pronunciamento, você chamou a atenção para o fato de Jair Bolsonaro ter conseguido construir uma base social, que pode sustentar o governo dele, e defendeu que a esquerda deve se preparar para disputar essa base social. Qual é, na sua avaliação, o significado da vitória de Bolsonaro e do surgimento dessa base social?
José Dirceu: Muita gente me criticou por causa dessa fala. Alguns fizeram comentários, pelo Whatsapp, dizendo que eu estava desarmando a militância, com um discurso de desânimo e pessimismo.
Sul21: Não gostaram do que exatamente?
José Dirceu: Da ideia que pode ser um governo que permaneça, que vença eleições ou que se mantenha por meios autoritários, mesmo com eleições. Não podemos esquecer que na ditadura também tivemos eleições. O que tivemos agora não foi um elemento transitório, não foi mais uma eleição em que alguém da direita ganhou de nós, como o Fernando Henrique ganhou. Bolsonaro quer colocar o Brasil sob o guarda-chuva norte-americano, alinhando-se com a política dos Estados Unidos, um projeto totalmente contrário aos interesses nacionais. Além disso, tem uma visão de Estado mínimo que pretende resolver a crise fiscal e a crise de acumulação de capital via redução dos gastos sociais e não via o enfrentamento dos juros e de uma reforma tributária que fizesse um ajuste patrimonial no país.
A apropriação da renda nacional pelo capital financeiro é uma anomalia gravíssima do capitalismo brasileiro. A estrutura tributária brasileira é concentradora de renda e não distribuidora. O que distribuiu renda no Brasil foi o salário mínimo, o SUS, a educação pública gratuita, a LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social), o BPC (Benefício de Prestação Continuada), o Bolsa Família, a Previdência, entre outras políticas. A dívida pública concentra um absurdo de renda. Se você puser R$ 300 bilhões em dez anos, terá R$ 3 trilhões concentrados na mão de uma minoria da população. Duvido que chegue a 5% da população, mas, mesmo que fosse 10%, não diminuiria a gravidade do problema.
A cabeça do governo Bolsonaro – Moro, Guedes e os militares nos ministérios da Infraestrutura, Ciência e Tecnologia, Gabinete de Segurança Institucional e Defesa – procurará fazer uma reorientação da economia e do Estado brasileiro. Haverá uma oposição cada vez maior a esse projeto pois ele entra em contradição com os interesses da maioria dos brasileiros e brasileiras. Isso já começou a se manifestar em temas envolvendo política externa, escola sem partido e outros. Há oposição a essas propostas deles, inclusive em setores das elites, tanto é que ele voltou atrás nas propostas de fusão dos ministérios da Agricultura e Meio Ambiente e da Indústria, Comércio e Desenvolvimento com a Fazenda e o Planejamento.
A reforma da Previdência que querem fazer também enfrentará resistência. Trata-se de uma poupança de quase meio trilhão que hoje tem contribuição repartida entre trabalhador e empresário. Eles querem tirar o máximo possível disso e colocar no mercado, entregar para os bancos. Na verdade, para três bancos: Santander, Bradesco e Itau/Unibanco. Também na Saúde e Educação eles estão visando o mercado. Os grandes grupos de educação estão de olho na educação à distância, que será privatizada. Essa educação à distância será terceirizada. A Saúde representa um filão extraordinário. Basta ver quanto o governo gasta com saúde e quanto as pessoas gastam com planos de saúde. Com todos os seus problemas e deficiências, o Brasil possui o sistema de saúde mais completo do mundo.
Esse é o embate político que haverá no Brasil e acredito que temos força para enfrentá-lo. Nós estamos vivendo um período histórico onde acumulamos organizações políticas e sociais, programas, ideias e lideranças que não foram destruídas como aconteceu no golpe de 64. Temos uma base política e social para enfrentar e fazer oposição ao governo Bolsonaro. Esse é o mandato que recebemos das urnas.
Sul21: No terreno da política externa, essa ideia de um alinhamento praticamente total com os Estados Unidos vai contra a tradição da diplomacia brasileira e a própria posição das Forças Armadas que, no período da ditadura, adotou medidas como uma política de aproximação com países da África e fez um acordo nuclear com a Alemanha. Na sua avaliação, entre os militares brasileiros hoje há um consenso ou uma posição dominante favorável a esse alinhamento automático com os Estados Unidos?
José Dirceu: Tudo indica que sim. Os militares costearam o alambrado, como dizia o Brizola. Eles foram deslizando para uma posição liberal extremada pró-mercado. Eles querem preservar a Previdência deles, que custa R$ 32 bilhões por ano, e os programas de modernização das Forças Armadas, como o submarino nuclear e a tecnologia de enriquecimento de urânio. Já quanto às propostas de Bolsonaro para temas como Alcântara e Amazônia seguem uma linha de submissão aos Estados Unidos. A política externa de Bolsonaro e de Ernesto Araújo, se é que tem uma, é uma coisa ideológica e fundamentalista religiosa.
Os interesses do Brasil não são compatíveis com os interesses dos Estados Unidos e da Europa em questões fundamentais, especialmente no comércio. Eles querem abrir os nossos mercados, mas não querem abrir os deles. Além disso, nós não apoiamos a política norte-americana que promoveu a guerra no Iraque, a intervenção na Líbia, que estimula o rearmamento, nega o Acordo de Paris e o Acordo de Desarmamento Nuclear, cogita uma intervenção militar na Venezuela. Bolsonaro apoia a política de Trump inclusive naquilo que ela tem de moralista. Na prática, os norte-americanos estão conseguindo o que eles pregavam há 30 anos, ou seja, que os exércitos se transformassem em polícias internas para combater o narcotráfico e o terrorismo, e não para a defesa nacional.
O nacionalismo de Bolsonaro é de mentira. Ele é muito mais retórico, explorando o nacionalismo que existe entre o povo por meio dos símbolos nacionais, do que uma política de defesa dos interesses nacionais. A negação do Mercosul e da Unasul significa recusar o papel de liderança que o Brasil tem na América do Sul. Trump, para defender os interesses dos Estados Unidos, quer desconstituir os blocos, principalmente porque há um bloco nascente liderado pela China. Na geopolítica mundial hoje, além da China, a Rússia, a União Europeia e a Turquia, cada uma com seu grau, atuam, em vários temas, como contraponto à política imperialista dos Estados Unidos.
A política de Bolsonaro vai contra o interesse nacional, principalmente no tema “pré-sal”. O pré-sal é importante pelo tamanho de suas reservas, pela indústria que ele pode desenvolver, mas também pela renda. Exportar dois milhões de barris de petróleo e investir essa renda na nação é uma coisa. Exportar esse dois milhões de petróleo e a maioria dessa renda ficar com empresas privadas é outra bem diferente. Neste último caso, essa renda é transferida para as elites ou para o exterior. Estamos falando de uma renda que pode significar 50 bilhões de dólares por ano. Em dez anos são 500 bilhões de dólares. Você pode mudar a face do país com esse dinheiro. Todos os países do mundo com grandes reservas de petróleo cobraram royalties e se empoderaram da riqueza do petróleo para poder se desenvolver. A grande revolução que o Chávez fez na Venezuela foi usar a renda do petróleo para combater a pobreza e a miséria. E a situação atual que vive a Venezuela deve-se, em boa medida, à queda do preço do barril de petróleo de 100 para 40 dólares.
Sul21: Considerando o atual cenário internacional, a vitória de Bolsonaro no Brasil não parece ser um ponto fora da curva. Além da eleição de Trump nos Estados Unidos, a direita e a extrema direita vem crescendo em vários países europeus e também em outras regiões. Como entende esse avanço político da direita e da extrema-direita em vários lugares do mundo?
José Dirceu: A única perna que não combina neste cenário é que o Bolsonaro não é nacionalista. Só é na retórica. A direita no Brasil sempre existiu. Ela foi absorvida, de certa maneira, pelo centro. A vitória do PSDB durante seis eleições em São Paulo é explicada, em parte, porque ele absorveu o malufismo e o quercismo. O (Alberto) Goldman era o braço direito o Quércia. O Aloysio (Nunes) foi vice do Fleury. Nos últimos 20 anos, o Brasil sempre teve algo entre 30 e 35% dos votos para o PT e aliados, entre 30 e 35% para o PSDB e aliados. Continuou a ter entre 30 e 40% de votos para o PT e aliados. Mesmo que suas principais lideranças não tenham apoiado Haddad no segundo turno, uma parcela importante do eleitorado do PDT e mesmo do PSDB votou nele.
Considero aqui uma hipótese: se o Dória tivesse sido candidato a presidente no lugar do Alckmin, talvez o Bolsonaro não tivesse 46% de votos. Até poderia ter ido para o segundo turno, mas com uma votação na casa dos 25%. A maior parte do eleitorado do PSDB foi absorvida pelo Bolsonaro com a pauta liberal dele e com a pauta do combate à violência com violência. Desde os tempos do Maluf existe isso.
O resultado eleitoral deste ano expressa a falência do PSDB, do DEM e do PMDB, não do PT nem do PDT, PSB ou PCdoB. Em maior ou menor grau, cada um sofreu a sua derrota e seu fracasso. E há uma força nova representada pelo Bolsonaro, pelo PSL e por grupos políticos como o MBL. O fato de a Janaina (Paschoal) ter feito dois milhões de votos, significa que esses grupos representam uma nova força política. Precisamos reconhecer isso. E eles têm mídia agora, via a Record e as igrejas evangélicas. A pauta liberal e identitária da Globo, defensora de uma visão norte-americana do multiculturalismo, bate de frente com a pauta religiosa do neopentecostalismo da Record e das igrejas evangélicas. A ideia da Escola sem Partido também bate de frente com as elites liberais do país. Os editoriais de veículos como Folha, Veja e Globo são contrários ao Escola sem Partido.
Bolsonaro não só conquistou uma maioria como organizou uma minoria forte, agressiva e violenta, que pode vir a se constituir em milícias inclusive. Não há dúvida de que ele tem um caráter autoritário. Veremos agora se ele é também uma ameaça à democracia. A medida que eles tentaram para entrar nas universidades com força policial foi detida pelo Supremo. Ele pode ter contrapesos no Parlamento, na mídia, no Supremo, nos partidos, nos movimentos sociais e sindicais, bem como na sociedade. Não se aplica uma política como eles pretendem aplicar, sem uma forte oposição na sociedade, a não ser que implantem uma ditadura. E, mesmo assim, houve oposição à ditadura e ela acabou derrotada.
Sul21: Logo depois da eleição, se espalhou nas redes sociais o tema da necessidade de uma autocrítica dos derrotados, especialmente da parte do PT. Neste momento, a esquerda como um todo parece estar iniciando um debate sobre o que aconteceu, os erros cometidos e os desafios para o futuro. Na sua avaliação, quais foram alguns dos principais erros cometidos neste processo e quais aprendizados eles propiciam?
José Dirceu: Em primeiro lugar, creio que precisamos reconhecer que não estávamos à altura dos desafios das redes sociais. E não foi por falta de aviso da própria realidade, desde a eleição do Obama, passando por 2013 e 2016. Em segundo lugar, ficou evidente que estamos sem um pé do nosso tripé que é a presença nos bairros populares. Houve um claro enfraquecimento da nossa presença nestas comunidades. O Whatsapp é importante, sem dúvida, mas nós estávamos lá para responder o que estava sendo enviado pelo Whatsapp? Eles estavam lá para responder.
É evidente que as igrejas evangélicas desequilibraram esse cenário, bem como o apoio econômico empresarial que ele teve. Além disso, se não tivesse ocorrido o impedimento do Lula talvez nós tivéssemos vencido as eleições no primeiro turno. Mas é importante assinalar que o fato de termos feito mais de 47 milhões de votos no segundo turno representa um resultado importante que pode ser considerado uma vitória dentro de uma derrota. Você pode sofrer derrotas de vários graus.
Nós também precisamos repensar nossa linguagem, nossos eixos, as ideias fortes que apresentamos para a sociedade. Se olharmos nossos governos estaduais e municipais é possível perceber uma defasagem entre os objetivos dos nossos programas de governo e a situação real desses governos e do País. Estamos governando em crise orçamentária e fiscal, com recessão e desemprego. Precisamos dar uma repensada no modo petista de governar. E o partido precisa se organizar para essa nova fase de uma nova maneira. Se ele quer enfrentar o trabalho nas redes e a luta política e social na frente de massas, como se falava, vai precisar se reorganizar para isso.
Está na hora também de reanalisar o capitalismo brasileiro, com sua nova tendência de financeirização, estudar o papel do capital financeiro bancário e o tipo de mercado de trabalho que está sendo criado, algo que afeta cada dia mais os sindicatos. A grande maioria dos trabalhadores hoje está no mercado informal ou no mercado não industrial. O PT precisa considerar tudo isso para fazer uma atualização do seu programa e uma avaliação de como a luta política e social está se dando hoje. Bolsonaro ganhou uma parcela importante do nosso eleitorado para as ideias-chave dele, de ordem, autoridade, defesa da família, da religião. Acredito que o PT e a esquerda em geral têm condições de fazer isso, cada um com seus métodos e objetivos.
Sul21: Outro elemento importante da conjuntura atual é a situação do ex-presidente Lula que segue preso e sofre um novo processo agora, envolvendo o sítio de Atibaia. Considerando o que foi a recente audiência que ele teve na Justiça Federal, em Curitiba, os sinais não são muito animadores do ponto de vista de uma absolvição. Na sua avaliação, qual a dimensão e a importância que o movimento pela libertação de Lula deve adquirir neste período que se abre com a vitória de Bolsonaro? Há algum risco de que esse tema meio que caia em esquecimento?
José Dirceu: O PT fará de tudo para que isso não aconteça. Defenderá o direito de Lula à liberdade e a anulação do processo do tríplex, que é escandaloso e teve um julgamento sumário, político e de exceção. Há quem diga que essa não é a pauta, mas sim o governo Bolsonaro e a oposição a ele. Nós não estamos dizendo que o Lula Livre ou a anulação do processo é a pauta das oposições, mas sim que é a pauta daqueles que querem defender o estado de direito no Brasil. O Lula não é o último, mas sim o primeiro. Amanhã pode acontecer com qualquer um. Está ocorrendo agora uma tentativa de criminalizar lideranças de movimentos, sindicatos, associações e grêmios estudantis via processo de improbidade administrativa. Daqui a pouco será via o Imposto de Renda. Nós conhecemos isso.
Quando o país tem uma operação que reúne o Ministério Público, a Polícia Federal e um juiz, e quando o Ministério Público tem procedimentos investigativos sigilosos e a quebra de sigilo – seja bancário, fiscal, telemático ou telefônico – passa a ser uma simples medida administrativa, cada vez menos judicial, você tem as condições para constituir uma polícia política e um Estado policial. Reunir o poder de investigar com o poder de acusar tem consequências. O papel de investigar é da Polícia Federal e o papel de acusar e de ser fiscal do inquérito é do Ministério Público. Isso é o que está na lei, mas virou outra coisa. Foi votado na Constituinte que quem exerceria o papel de polícia judiciária, na União e nos Estados, seria a Polícia Federal e a Polícia Civil, e não o Ministério Público. O Supremo acabou autorizando o MP a investigar. Agora, parece que querem reverter isso.
Não se trata de o PT querer transformar o movimento Lula Livre na principal pauta e, com isso, alavancar a sua liderança. A situação do Lula é uma questão democrática que envolve os direitos e garantias democráticas e o devido processo legal. Quem não quer apoiar essa campanha tem o direito de fazê-lo, mas é um erro, porque amanhã poderá ser ele o alvo. Nós conhecemos como começam as ditaduras. Temos experiência disso no país. O Brasil viveu praticamente metade do seu período republicano sob ditaduras. O movimento pela liberdade de Lula tem esse sentido para nós e creio que ele tem respaldo na sociedade.
Sul21: Você mencionou as crescentes tentativas de criminalizar lideranças políticas, de sindicatos, movimentos sociais e outras organizações da sociedade. À luz da tua experiência com o que aconteceu pós-64, como avalia o risco de termos uma escalada da repressão e do fechamento político no Brasil? Qual o tamanho dessa ameaça?
José Dirceu: Você sabe que isso é como diz aquele poema do Brecht. Muitos acham que não vai acontecer. Depende da resistência. A minha avaliação é que há riscos mas que a sociedade brasileira é capaz de resistir ao avanço do autoritarismo se o Bolsonaro trilhar esse caminho. Estamos vendo na questão do Escola sem Partido, da invasão das universidades, das ameaças à imprensa, da intenção de aplicar a lei antiterrorismo contra os movimentos sociais o repúdio de setores da sociedade que não são de esquerda. Isso significa que há no país energia e força para resistir ao autoritarismo. Os mais de 47 milhões de votos que o Haddad teve são o maior testemunho disso.
É lógico que há o elemento militar aí. Não sabemos ainda em que grau e intensidade esse elemento vai interferir no processo político democrático. Também é possível encobrir a repressão por meio da luta anti-corrupção e da lei antiterrorismo para impedir a oposição social, parlamentar e política. A democracia estará ou não em risco conforme a nossa capacidade de nos opor a qualquer tentativa de violar a Constituição e os direitos fundamentais.
Sul21: Gostaria que falasse um pouco sobre o primeiro volume de suas memórias. Como nasceu a ideia e como foi a experiência de contar essa história?
José Dirceu: Eu mesmo não me considerava apto e capaz de escrever essas memórias. Isso aconteceu muito pela insistência da Simone, minha esposa, para que a Maria Antonia, minha filha, conhecesse a minha história. E também para que a juventude conhecesse essa história. Na prisão, você tem que ocupar o tempo da maneira mais útil possível, trabalhando, estudando, escrevendo, se exercitando, jogando futebol, xadrez, dominó, rezando, cantando, conversando com a família, com os advogados, com os outros presos. Você convive com dezenas de presos em uma galeria durante três, quatro anos, em um espaço com 32 celas, um pátio embaixo de 10 por 10 metros, um pátio um pouco maior para a visita das famílias. Você vai à biblioteca, ao serviço médico, à assistência social. Você está sem liberdade e tem que manter a liberdade de pensamento, de criação.
Escrever esse livro me ajudou também a passar os sábados e domingos que são muito pesados quando você está preso, principalmente porque as visitas ocorrem na sexta. Eu intitulei esse período de depressão pós-visita. Acabei escrevendo 700 páginas, com o mesmo papel e a mesma caneta…
Sul21: Todo ele foi escrito na prisão?
José Dirceu: Sim, escrevi todo ele na prisão, sentado numa cama, com uma luz mais pra ruim do que pra boa, sem mesa e sem cadeira. Escrevi esse livro durante um ano aproximadamente. Quando saí, trabalhei o texto durante uns seis meses. Depois levou mais seis meses para fazer a revisão e entreguei para alguns amigos lerem. Entre o final de agosto e o começo de setembro o livro ficou pronto.
Meu objetivo foi contar a minha história e revisitar a história do Brasil nestes 60 anos. Participei de alguns dos principais eventos dessa história. Às vezes por decisão minha, outras vezes pelo acaso e pelo imprevisto, fui personagem dela. Fui um dos líderes da resistência de 68 à ditadura, participei da clandestinidade, da resistência armada, da fundação do PT, da campanha das Diretas, do impeachment do Collor, dos nossos governos. Percorri o Brasil centenas de vezes, visitando quatro ou cinco vezes praticamente todas as cidades com mais de 100 mil habitantes. Viajei muito pelo Brasil na clandestinidade, depois como presidente do PT, em várias campanhas. Fiz relações com vários setores da sociedade, de todos os partidos. E fui protagonista da vitória e do governo do Lula. Depois sofri uma perseguição judicial. Eu lutei muito, até ser preso em 2013, contra o caráter da Ação Penal 470 que foi o ensaio primeiro para a Lava Jato.
Procurei também falar da situação internacional, da minha vida em Cuba, dos ciclos econômicos pelos quais o Brasil passou neste período, das crises econômicas, dos governos, da atuação do PT, de outras forças de esquerda, dos movimentos sociais. Pelos retornos que estou recebendo, acredito que fui razoavelmente bem sucedido. Procurei, principalmente, deixar uma contribuição para a juventude, para que ela reflita sobre os caminhos e projetos para o país, sobre a ideia do Brasil como uma nação soberana, como civilização dos trópicos, como uma democracia com participação popular, como um país com igualdade e justiça social. O Brasil é um país nacionalista que busca a justiça e a igualdade, que busca a liberdade e a democracia. Não é este país que o Bolsonaro diz representar.
Pretendo escrever o segundo volume agora, falando sobre o período na prisão. Quero falar um pouco sobre a calamidade que é o sistema penitenciário brasileiro e o absurdo dessas ideias de querer aumentar penas e por fim à progressão penal. O problema do sistema penitenciário é que ele não tem trabalho nem educação. A prisão deve ser para ressocializar e recuperar. A tendência da humanidade é extinguir progressivamente o regime fechado e aplicar mais a perda pecuniária e a perda de direitos, o que já existe inclusive na legislação brasileira, que é uma das mais avançadas do mundo. Se implantada, a reincidência cairia para 10%.
Fonte: Marco Weissheimer – Sul21