#Destaques | 24/09/2018
Luiz Gonzaga Belluzo é economista, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente do Palmeiras. Em 2014, foi um dos articuladores do “Manifesto dos economistas pelo desenvolvimento e inclusão social” e, em 2016, foi uma das vozes que se levantou contra o golpe que depôs a presidenta Dilma Rousseff (PT).
Na última quinta-feira (20), ele foi convidado do programa No Jardim da Política, da Rádio Brasil de Fato, e falou sobre os desafios da economia brasileira para o próximo período, fez críticas à PEC do Teto dos Gastos, ao modelo neoliberal e à articulação da grande mídia com o mercado financeiro para interferir no processo eleitoral.
Confira alguns temas abordados por Belluzzo nesta entrevista exclusiva:
Desenvolvimento e inclusão
Nós já tivemos vários exemplos históricos de conjunção entre esses dois objetivos. Eu diria que o Brasil já viveu vários momentos em que conseguiu fazer mais desenvolvimento do que inclusão. Na Europa do pós-guerra, com o Estado de bem-estar, foram feitas as duas coisas, e desenvolvimento e inclusão se alimentaram reciprocamente e gestaram um período que foi chamado “os 30 anos gloriosos”, em que a distribuição de renda melhorou, as pessoas receberam proteção social, sistemas de previdência que resguardaram as pessoas na velhice, e isso se aplica aos Estados Unidos também.
Aqui no Brasil nós estávamos no período do desenvolvimento com pouca inclusão, porque nós chegamos muito tarde com essas preocupações sobre os direitos sociais e econômicos. Eles estão consolidados na Constituição de 88. Foi aí que nós reconhecemos cabalmente que esses direitos deveriam ser contemplados, que eles faziam parte, digamos, da ética da sociedade contemporânea. E eles foram muito bem executados nos anos 2000 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Eu diria que, hoje em dia, no debate econômico internacional, a inclusão é a questão com a qual estão mais envolvidos os especialistas de todos os fóruns. Se você pegar, por exemplo, o Instituto do Pensamento Econômico, que é patrocinado pelo George Soros. Inclusive corre nas redes sociais que o George Soros é comunista (risos). Aí nós já estamos no limite do gênero humano.
O George Soros é um sujeito liberal, estudou com Karl Popper, mas tem uma visão da economia muito mais próxima dos keynesianos, e eu preciso esclarecer que, ao contrário do que dizem nas redes sociais, o Keynes [John] não era comunista, era um liberal, como disse a revista The Economist recentemente. Mas o Soros patrocina isso, tem uma riqueza de debates sobretudo concentrada na questão sobre qual é o objetivo do crescimento. O objetivo do crescimento é as pessoas.
Organização da economia
O que não temos no Brasil hoje é uma discussão centrada em como nós vamos organizar, estruturar o desenvolvimento. Porque hoje está tudo preso nas abstrações da chamada macroeconomia. Então todo mundo diz que precisamos fazer a reforma da Previdência, precisamos fazer o ajuste fiscal. Como se faz uma reforma da Previdência, se junto com ela se faz uma reforma trabalhista que vai reduzir a contribuição para a Previdência?
Aí vem outro e diz: nós precisamos transformar o sistema de Previdência em um sistema de capitalização. Se isso é feito, a Previdência quebra. Então é preciso pensar nas coisas com calma, com ponderação. Mas o debate econômico hoje está centrado de uma maneira absurda e abusiva em cima de questões que na verdade eliminam toda a discussão.
Então vem o Paulo Guedes, economista do Bolsonaro, e diz que ele vai privatizar tudo e gerar um trilhão [de reais]. É como vender todas as propriedades para sair consumindo, “mandando bala”. Como se organiza a economia assim? A economia é composta de empresas, que são unidades importantes, e elas tem articulação entre elas. O que os chineses fizeram foi isso: uma articulação entre a empresa pública e a privada.
Vou dar o exemplo dos painéis solares. A China tem um programa de painéis solares, tem uma empresa pública que cuida do investimento no setor e uma empresa privada que é a maior produtora de painéis do mundo. Assim que eles funcionam: com pragmatismo e inteligência. Aqui a coisa está muito ruim, vamos combinar.
Emenda do Teto dos Gastos
Esse é um exemplo claro da incapacidade de se perceber a natureza no problema. Eu me lembro que quando eu era estudante no primário, na cidade de Cananeia, a minha professora, eu diria, de maneira inconveniente e autoritária, ela pegava alguns alunos e os colocava ajoelhados no milho e um chapéu de burro na cabeça. Eu não achava legal, achava que isso não se fazia, mas era o espírito da época.
Mas eu faria isso com a pessoa que teve a ideia do teto de gastos, com o maior prazer. Colocaria um teto de burro nele. Porque a ideia em si mesmo é tola e na verdade revela um desconhecimento de como funciona uma economia de mercado em que a formação da renda depende dos gastos dos consumidores, dos empresários e do Estado. E se coloca o teto de gastos achando que vai conseguir realizar isso.
A grande vantagem do teto de gastos é que ele é irrealizável, não vai funcionar, e os governos serão obrigados a desrespeitá-lo. Isso, qualquer pessoa normal, que não esteja tomada por convicções ideológicas, sabe.
Surgimento do nazifascismo
Eu acabei de escrever um artigo no Jornal no Brasil sobre um estudo que foi feito nos Estados Unidos, relacionando a austeridade e a ascensão do nazismo na Alemanha. O estudo é muito bem-feito e mostra que há várias explicações para a ascensão do nazismo. A primeira é o sentimento do povo alemão contra o Tratado de Versalhes, que submeteu a Alemanha às reparações. A segunda foi o desemprego. E a terceira, foram os efeitos da austeridade.
Eles fazem essa investigação em 1900 distritos eleitorais alemães, e chegam à conclusão que a austeridade foi o fator principal, porque isso pegou uma parte da classe média ressentida, deu razões para a oligarquia alemã, que apoiou o nazismo. Mas os trabalhadores desempregados votaram nos partidos mais à esquerda.
Esse estudo é importante porque estamos assistindo a um fenômeno parecido aqui no Brasil. A gente fica surpreso com pessoas que dizem que vão votar no Bolsonaro, pessoas que nunca imaginamos que iam votar. Às vezes são mulheres, pobres, que ouvem a mensagem de que “vou consertar tudo isso aí”, e por uma questão de desespero acabam aceitando a ideia de que isso pode ser uma solução.
Reforma Tributária
É um verdadeiro escândalo universal o caráter regressivo do sistema tributário brasileiro. O que quer dizer regressivo? Que os pobres pagam mais imposto do que os ricos. Quando você vai comprar uma geladeira, por exemplo, e você tem uma renda de R$ 10 mil, você vai pagar a mesma coisa do que uma outra pessoa que tenha uma renda de R$ 1.500.
Então é regressivo. E esses impostos indiretos representam mais de 50% da receita tributária. E na verdade é o seguinte: o candidato do Bolsonaro está propondo que seja cobrada uma alíquota de Imposto de Renda de 20% uniforme para todos. Quer dizer, ele quer agravar a iniquidade do sistema tributário.
Tem mais uma coisa que não é dita: se formos olhar os estudos que são feitos sobre evasão fiscal e localização de riqueza dos mais beneficiados em paraísos fiscais, vamos ver que o Brasil tem um percentual enorme de fuga das obrigações fiscais. Há um estudo feito pelo Gabriel Zucman junto com o Piketty, mostrando que a fuga das obrigações fiscais e a busca por paraísos fiscais é algo inacreditável.
Isso não é discutido aqui, e é preciso fazer. E quem são os beneficiários disso? São as mesmas pessoas que dizem: “é preciso fazer austeridade, não se pode gastar porque senão a situação fiscal do país vai ser comprometida”. E eles não comprometem? Cerca de 60% do que sai daqui sobre movimentação financeira vai para paraísos fiscais. É a estimativa do Zucman. São esses que querem dizer que é preciso fazer austeridade.
Emprego e futuro
Essa é uma questão que diz respeito a algo que ocorre globalmente no capitalismo e mais profundamente em um país que realiza uma reforma trabalhista que é uma verdadeira advocacia da precarização. O mundo inteiro está percebendo que será preciso criar formas de remuneração e renda que escapem da relação salarial, porque as novas tecnologias estão devastando os mercados de trabalho.
Quem não acredita nisso, leia os estudos sobre quantos postos de trabalho estão sendo destruídos, e nós estamos antecipando essa realidade com a reforma trabalhista. Na França, o [Emmanuel] Macron propôs uma reforma trabalhista. Mas ele sofreu tanta pressão, e ele também não é totalmente insensível, que agora está propondo a criação de uma forma de remuneração e renda que não dependa da relação salarial. É a renda básica de cidadania. E vários países estão começando a se dar conta de que o capitalismo está mudando estruturalmente por conta das transformações tecnológicas, da inteligência artificial, etc. Todo esse conjunto de inovações que deriva de uma capacidade incrível de inovar, de transformar, de robotizar, de fazer automação. Há vários estudos muito sérios sobre isso.
Então precisamos pensar que o emprego, no seu sentido convencional, está sendo afetado pelas transformações que são inevitáveis, e o Brasil precisa se mobilizar para isso. E essa é mais uma razão para pensar a mudança de tributação, porque como é possível financiar isso? É preciso mudar a incidência dos tributos, é preciso mudar o gasto público, é preciso insistir no papel do investimento público e no papel redistributivo do sistema fiscal.
Mídia e mercado financeiro: união pelo consenso
Nós estamos observando no Brasil, nos últimos anos, que se acentuou essa articulação entre o mercado financeiro e a mídia. Você liga na GloboNews e é uma repetição assustadora, sem nenhum espírito crítico. Outro dia eu disse isso para um amigo que trabalha na Globo: “olha, eu não estou falando contra vocês, eu estou falando contra a forma como isso é conduzido”. Não há nenhuma diversidade. Eu me lembro de quando diziam: é preciso fazer o ajuste fiscal, é preciso fazer o ajuste fiscal. E agora é isso: sobe o [Fernando] Haddad ou o Ciro [Gomes] e o mercado fica nervoso.
Essa articulação [mídia e mercado financeiro] é muito antiga aqui, e ela se acentuou nos últimos anos. E isso prejudica muito o debate econômico. Eu vejo que mesmo nos jornais há uma reiteração do mesmo, as opiniões são normalmente concentradas numa determinada direção. Há pouca diversidade. E para piorar, há uma ligação entre a grande mídia e as mídias sociais, porque é um jogo entre eles. Ao mesmo tempo em que as mídias sociais reproduzem o que está na grande mídia, a grande mídia também aceitou os padrões de comportamento das mídias sociais, da afirmação sem dúvida, não existe argumentação.
Fonte: Brasil de Fato