#Destaques | 26/12/2016
Estudantes chegaram a ocupar 1.197 escolas em 21 estados. “Toda a nossa resistência vai nos render frutos”, diz presidenta da União Brasileira de Estudantes Secundaristas
As medidas anunciadas pelo presidente Michel Temer para a educação desagradaram alunos, pais, professores e especialistas na área e a resposta veio na mesma proporção: 2016 foi o ano da maior mobilização estudantil da história do país. No auge do movimento, na última semana de outubro, estudantes chagaram a ocupar 1.197 escolas e universidades em 21 estados contra a reforma do ensino médio (Medida Provisória 746), o projeto Escola Sem Partido e o congelamento de recursos públicos para investimentos sociais, inclusive na educação (Emenda Constitucional 95).
“Fizemos uma alusão com os caras-pintadas (movimento estudantil de 1992 pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello), que também foi grande, mas essa é a maior mobilização estudantil que já ocorreu no Brasil”, disse na época a presidenta da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Camila Lanes. “Fazemos um balanço muito positivo. Toda a nossa resistência vai nos render frutos, até derrotarmos a Medida Provisória (746). Ela reverbera para além dos muros das escolas e chega às pessoas que não compreendiam nossa real pauta.”
Nas ocupações que se espalharam pelo país desde meados de outubro, aulas públicas diárias, debates e intervenções culturais, levaram os estudantes a afirmar que fizeram eles próprios uma reforma no ensino médio mais próxima das demandas da juventude.
Em Belo Horizonte, em novembro, um acordo histórico garantiu que o movimento Ocupa Tudo, da Universidade Federal de Minas Gerais, firmassem um acordo com a rádio da universidade, a UFMG Educativa, garantindo quatro horas diárias da programação exclusiva voltada ao movimento, além de plantão para notícias urgentes. Em Guarulhos, na Grande São Paulo, um grupo de 30 estudantes secundaristas e universitários ocupou por 11 dias a Câmara de Vereadores do município contra as medidas do governo federal.
Devido à mobilização, o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) adiou as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para pelo menos 191.494 dos 8,7 milhões de inscritos, que fariam a prova em 304 locais ocupados. O exame foi aplicado em duas datas 5 e 6 de novembro e 3 e 4 de dezembro. Na época, entidades estudantis afirmaram, em nota, que o MEC adiou as provas para tentar desmobilizar os estudantes, que as eleições municipais – semanas antes – coexistiram com as ocupações sem transtornos e que eles estavam abertos ao diálogo para fazer o mesmo com o Enem.
Um dos principais focos de luta, no entanto, foi o Paraná, onde 848 escolas públicas foram ocupadas. “Não estamos lá para fazer baderna, não estamos lá de brincadeira. Lutamos por um ideal, porque a gente acredita no futuro do nosso país, que vai ser o país dos nossos filhos e dos filhos dos nossos filhos, e eu me preocupo com esse país”, disse a estudantes Ana Julia Ribeiro, de 16 anos, aluna da Escola Estadual Senador Manuel Alencar Guimarães, que virou ícone da luta dos secundaristas após discurso histórico na Assembleia Legislativa do Paraná, em outubro.
“Uma ‘escola sem partido’ é uma escola sem senso crítico, é uma escola racista, é uma escola homofóbica. É falar para os estudantes que querem formar um exército de não-pensantes, que só ouve e baixa a cabeça, e não somos isso”, disse a jovem emocionada no plenário. “A PEC 241 (promulgada como Emenda Constitucional 95) é outra afronta, inclusive para a Constituição cidadã de 1988. É uma afronta à Previdência, à saúde, à educação e à assistência social. Não podemos deixar isso acontecer e cruzar os braços.”
Em 26 de outubro, o jovem Lucas Eduardo Araújo Lopes, de 16 anos, foi encontrado morto na Escola Estadual Santa Felicidade, em Curitiba, que estava ocupada desde o dia 14 daquele mês. De acordo com informações da Polícia Militar, o adolescente foi encontrado com perfurações no tórax e no pescoço. “Os que estão aqui representam o Estado e os convido a olhar as mãos de vocês. Elas estão sujas com o sangue do Lucas”, disse a estudante Ana Julia, em um dos momentos mais tensos do seu discurso.
Os estudantes paranaenses sofreram também investidas de militantes do Movimento Brasil Livre (MBL), que tentaram entrar à força em colégios ocupados. Em um deles, chamado Lysímaco Ferreira da Costa, no bairro Água Verde, em Curitiba, os alunos afirmaram que foram agredidos pela Polícia Militar, chamada após o tumulto. No Colégio Estadual do Paraná (CEP), maior escola do estado, os militantes teriam ofendido alunas com provocações machistas.
Como resposta à mobilização, o Ministério da Educação solicitou, por meio de comunicado oficial expedido em outubro, que dirigentes de campi da rede federal de educação profissional e tecnológica identifiquem estudantes e manifestantes que ocuparem instituições de ensino. No distrito federal, o juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da Infância e Juventude, autorizou o uso de técnicas de tortura para convencer os estudantes a desocupar os locais, como cortes do fornecimento de água, luz e gás, restrição ao acesso de familiares e até uso de “instrumentos sonoros contínuos” para impedir o sono dos adolescentes.
O movimento estudantil foi criticado publicamente por Temer durante um seminário de Infraestrutura e Desenvolvimento do Brasil, em Brasília, quando o presidente afirmou que os alunos não saberiam o significado da sigla PEC (Proposta de Emenda à Constituição). “(Pergunto) você sabe o que é uma PEC? É uma Proposta de Ensino Comercial. Estou dando um exemplo geral de que as pessoas debatem sem discutir ou ler o texto”, disse. Ele afirmou que ao ocupar jovens usam “argumento físico” em vez de “intelectual e verbal”.
Apesar disso, os jovens resistiram e mantiveram as ocupações, com intensa mobilização, por cerca de um mês. Depois disso, tribunais de justiça estaduais expediram uma série de mandatos judiciais de reintegração de posse e os jovens foram obrigados a desocupar as escolas e universidades, deixando um legado de resistência. “A mobilização de vocês é fundamental. Nas ocupações de escolas e universidades estão as mais importantes trincheiras contra o retrocesso, pela democracia e pelos direitos sociais”, disse a ex-presidenta Dilma Rousseff em vídeo gravado para os estudantes, publicado por ela em 16 de novembro.
De retrocesso em retrocesso
Na educação, as medidas de Temer para não tardaram a chegar. A primeira delas, anunciada em 22 de setembro, foi a chamada reforma do ensino médio, apresentada por meio da Medida Provisória (MP) 746 e elaborada às pressas, sem consulta à comunidade escolar. Ela foi duramente criticada por especialistas, por ser considerada ultrapassada e por fragmentar e empobrecer a formação. O projeto prevê a flexibilização do currículo para que os alunos escolham entre as áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia deixariam de ser obrigatórias e os professores não precisariam mais ter diploma de licenciatura.
O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados no último dia 7, com a obrigatoriedade do ensino de sociologia e filosofia, e segue para o Senado. Na última segunda-feira (19), o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, enviou parecer ao Supremo Tribunal Federal afirmando que a medida provisória é inconstitucional e que demanda uma discussão complexa e “precisa de participação democrática, não podendo ser feita de forma abrupta.”
Em nota, o Ministério da Educação afirmou que respeita o parecer de Janot, mas que a pasta “mantém o entendimento de que a Medida Provisória da reforma do ensino médio obedece ao requisito constitucional da urgência e relevância”.
Outra medida de Temer que incidirá sobre a educação foi a promulgação do Emenda Constitucional 95, que congela por 20 anos os investimentos sociais do governo federal. Para especialistas, a medida trará prejuízos graves para a educação pública, que incluem de falta de materiais na escola e a impossibilidade de universalizar matrículas na educação infantil e no ensino médio, dois principais gargalos da educação pública brasileira. Para eles e emenda significa a inviabilidade do Plano Nacional de Educação e o desmonte dos serviços públicos.
No caso da educação, o teto de gastos começará a valer a partir de 2018 quando o governo deverá investir o mesmo valor que investiu em 2017 (equivalente a 18% da receita líquida do governo) mais o acréscimo da inflação do ano anterior, medida pelo IPCA. “A partir daí vão faltar coisas muito básicas nas escolas, como material de apoio, de escritório, papel higiênico e até salários, que serão ainda mais precários para os professores, além de salas ainda mais lotadas”, disse o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, após a promulgação. “É uma emenda que atende hoje à elite, mas que vai prejudicar o Brasil gravemente.”
Docentes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) estimaram que se a lei valesse desde 2005, os recursos para a área em 2015 teriam caído de R$ 98 bilhões para apenas R$ 24 bilhões. O crescimento de 100% em vagas nas universidades federais desde 2003 e de mais de 400% no número de mestres e doutores desde 1996 não teria ocorrido.
Um estado à parte
Em São Paulo, local das primeiras ocupações de escolas, organizadas ainda em 2015 contra a reorganização escolar do governo de Geraldo Alckmin, a estratégia não pôde ser implementada pelos estudantes. As ocupações tiveram força no início do ano, especialmente nas escolas técnicas. Em maio, a Procuradora-Geral do Estado liberou as delegacias regionais a recorrer à Justiça para fazer reintegração de posse de imóveis públicos ocupados.
“Nos mobilizamos nas ruas porque foi impossível fazer ocupações. Os estudantes estão sofrendo muita pressão nas escolas, por parte das diretorias. Em outras, há presença da Polícia Militar, como na (escola estadual) Fernão Dias. Ficamos sabendo que a polícia tem um álbum com 24 fotos de secundaristas que ocuparam escolas e que estão perseguindo eles nas ruas. Nós vamos denunciar a polícia para quem?”, denunciou a estudante Lilith.
Ainda assim, A Escola Estadual Diadema, mais conhecida como Cefam Diadema, primeira a ser ocupada no estado, em 9 de novembro de 2015, foi ocupada novamente esse ano, na mesma data, e desocupada pouco tempo depois.
No ano passado, no auge do movimento paulista, em 2 de dezembro, os estudantes chegaram a ocupar 213 unidades escolares em todo o estado. Após 25 dias de intensa mobilização, o governador veio a público suspender o projeto que pretendia fechar pretendia fechar pelo menos 94 escolas e transferir 311 mil alunos. Em seguida, o então secretário estadual da Educação, Herman Voorwald, pediu demissão.
Apesar da vitória dos estudantes, o governo Alckmin foi acusado de ter fechado 2.800 salas de aula em todo o estado, apesar de a rede ter recebido neste ano 70 mil matrículas a mais do que em 2015, segundo um levantamento da Rede Escola Pública e Universidade. Os dados, que configuram uma “reorganização disfarçada” segundo os estudantes, não foram confirmados pela Secretaria Estadual de Educação.
Uma das principais mobilizações no estado foi pela criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os desvios de recursos públicos destinados à merenda escolar. Para conseguir a instalação da comissão, criada em junho, secundaristas chegaram a ocupar por três dias o plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo. Entre 3 e 5 de maio permaneceram no local meninos e meninas vindos das escolas públicas, com amplo interesse por história e arte e muito conectados às redes sociais.
“Na próxima semana estaremos aqui novamente cobrando para que cada deputado ouça a nossa voz de estudantes que há meses estamos sem merenda. Seguiremos em luta intensa pela abertura da CPI, pela punição dos ladrões da merenda e pela escola dos nossos sonhos”, anunciaram os estudantes em jogral ao desocuparem o plenário.
Após tramitar por seis meses, foi aprovado no último dia 13 o relatório final da CPI da Merenda que apurou o pagamento de propina em contratos da merenda escolar da Secretaria Estadual da Educação, como já havia apontado as investigações do Ministério Público Estadual, da Justiça Federal e da Comissão Sindicante da Assembleia. Foram pagos R$ 1,3 milhão em propina pela Cooperativa Orgânica da Agricultura Familiar (Coaf) para garantir sua contratação pela Secretaria Estadual de Educação.
O relatório apontou que havia um núcleo de servidores na secretaria que agiu para favorecer o esquema. “A CPI não chegou onde queríamos. Mas foi possível mostrar que havia servidores na Educação envolvidos no esquema. Há perguntas não respondidas. Para onde foi o dinheiro? Delatores citaram os deputados Fernando Capez e Duarte Nogueira, ambos do PSDB, como destinatários. Isso não foi esclarecido”, afirmou o deputado Alencar Santana (PT).
Fonte: Sarah Fernandes / RBA